26/07/2009

in claris non fit interpretatio

Não queria ir de férias sem voltar pela última vez (espero) à questão da proposta de revisão constitucional do PSD/M.

Analisando a proposta verifico que de facto não há referência directa ao comunismo, tal como dizia o deputado Guilherme Silva… mas isso é no texto que se propõe como final para a Constituição, porque na justificação da proposta (descrição da situação fáctica) há referência e esta é clara: «[…] a Democracia não deve tolerar comportamentos e ideologias autoritárias, não apenas de Direita – como é o caso do Fascismo, esta expressamente prevista no texto constitucional – como igualmente de Esquerda – como vem a ser o caso do Comunismo, não previsto no texto constitucional [..]».

Para que se perceba qual o texto constitucional que se pretende alterar:
Nº 4, Art. 46º (Liberdade de associação)
«Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.»

Lembrando que na página 7 desta proposta uma das alterações sugeridas é «a menção, em todo o texto constitucional, às Regiões Autónomas com letra maiúscula, assim melhor se assinalando a sua dignidade institucional» fico apreensivo quando vejo a palavra «Fascismo» escrita com letra maiúscula (na constituição «fascista» é escrita com letra minúscula).

A história diz-nos que os primeiros ideais comunistas são normalmente atribuídos a Platão. O próprio Cristianismo advogou algumas das ideias comunistas. A revolução inglesa no séc. XVII e a Revolução Francesa no séc. XVIII tiveram a sua base no ideal comunista. Marx elaborou a sua teoria comunista. Lenine adaptou-a à sua visão. Estaline deu-lhe um toque pessoal.
Hoje, Cuba, Coreia do Norte, China, Venezuela, Bolívia (os mais conhecidos) são regimes auto-denominados Comunistas.

Na verdade, o Comunismo não é mais do que uma utopia e ninguém melhor que Thomas More na sua obra “Utopia” de 1516 para nos a explicar.
Ao contrário do que muita gente pensa, a utopia comunista não nasceu com a obra de Marx e Engels, o “Manifesto do Partido Comunista”.
Facilmente confundimos comunismo com leninismo, estalinismo ou mesmo trotskismo (talvez por desconhecimento claro dos conceitos e dos seus impulsionadores), o que não poderia ser mais errado.
Pelo facto de, escudando-se numa ideologia e alterando a sua essência, se cometerem crimes atrozes ou se implementarem sistemas de governo ditatoriais, totalitários ou autoritários não podemos apelidar essa ideologia, neste caso a comunista, de totalitarismo ou autoritarismo.
Da mesma forma que, baseando-se em alguns valores da direita, não podemos generalizar os defensores de ideologias de “Direita” de fascistas, nazis, salazaristas ou “pinochistas”.

Um segundo aspecto importante, e que não se pode esquecer, é que cada Constituição tem um contexto. A nossa não é excepção e surge num momento em que o salazarismo (exclusivamente português) estava muito presente na nossa sociedade. Não podemos por isso estranhar a referência às «associações armadas» e «ideologia fascista» alusão implícita ao fascismo (ideologia exclusiva italiana) e às «organizações racistas» que, também implicitamente, se referem ao nazismo (exclusivamente alemão).

Assim, compreenderia se a verdadeira intenção desta proposta de alteração fosse a de substituir a alusão a duas ideologias implícitas, nazismo e fascismo (esta última facilmente confundida com salazarismo), e tornar esta proibição constitucional mais abrangente. Não concordo é com a explicação de que a alteração tenciona a proibição de «comportamentos e ideologias autoritárias e totalitárias […] igualmente de Esquerda – como vem a ser o caso do Comunismo».
Parece-me que a justificação apresentada pelo PSD/M é de todo despropositada e sem qualquer sentido.

Não sendo um entendido em Direito, aprendi que na interpretação da lei não pode ser aplicado o lema “in claris non fit interpretatio”, ou seja, “se a lei é clara não há que interpreta-la”.
A lei deve ter uma interpretação mais profunda. Para isso deverá ter-se em conta a lei escrita e a intenção do legislador ou “espírito da lei”… e esta última, no caso específico, não poderia ser mais clara.

Nos sucessivos “esclarecimentos” na comunicação social é ainda dito que as alterações propostas apresentam alguns reforços democráticos.
Fico com dúvidas.

Primeiro propõem-se diminuir «as competências implícitas que o Tribunal Constitucional tem atribuído ao Estado no campo das matérias reservadas aos órgãos de soberania e, simetricamente, não as reconhecendo às Regiões Autónomas». Por outras palavras “aqui queremos mandar nós e o Tribunal Constitucional não deixa”. Isso ficou mais claro na Assembleia Regional da Madeira quando da apresentação deste documento AJJ acusou o TC de ser uma fonte de conflitos para região autónoma da Madeira sugerindo mesmo que poderia deixar de existir passando as suas competências para os juízes de carreira. De facto uma visão mais democrática não poderia ser emanada da boca e pensamento de Alberto João Jardim.
Além disso, o Estado deveria deixar de ser visto como um “Estado unitário” devendo passar a constar a designação “Estrutura de Estado”.

Depois pedem a extinção do Representante da República que, muito educadamente, o PSD/M apelida de «”vigilante especial” da ortodoxia constitucional do Estado!». Naturalmente que o poder que este cargo pressupõe passaria para a figura de um «“Presidente da Região Autónoma”, que cumula a posição de Chefe do Governo Regional». Isto, claro está, porque «a possibilidade de ser o próprio Chefe do Governo Regional a livremente nomear e exonerar os membros do seu Governo torna mais eficiente a tomada de opções políticas regionais na escolha das pessoas no contexto de um órgão de cunho executivo». Em minha opinião, outra noção clara da visão democrática destes senhores.

Podemos encontrar outros «reforços democráticos» neste documento. Mas nenhum deles com o requinte da «eliminação das organizações de moradores, excrescência revolucionária que a CRP tem teimado em manter e sem qualquer adesão à realidade social, assim se revogando os arts. 163º, 264º 3 265º da CRP.»

Transcrevo aqui a dita «excrescência revolucionária»:
«Artigo 263º
1- A fim de intensificar a participação das populações na vida administrativa local podem ser constituídas organizações de moradores residentes em área inferior à da respectiva freguesia.
2- A assembleia de freguesia, por sua iniciativa ou a requerimento de comissões de moradores ou de um número significativo de moradores, demarcará as áreas territoriais das organizações referidas no número anterior, solucionando os eventuais conflitos daí resultantes.»
O Artigo 264º define a “Estrutura” desta organizações e o 265º estabelece os “Direitos e competências”.
Pois à «excrescência revolucionária» é-lhe dado o direito «de petição perante as autarquias locais, relativamente a assuntos administrativos de interesse dos moradores».

Parece-me que urge fazer uma revisão constitucional e alterar o celebre Artigo que proíbe a ideologia fascista e torna-lo realmente abrangente a fim de evitar possíveis ideologias jardinistas.

De facto, parece-me que se trata de uma grande bota que a líder do PSD vai ter que descalçar… ou não!

Estarei de regresso em breve.


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