17/04/2017

Da memória

Ceifeiras na Lezíria
Da memória que se esquece ou da história que se apaga, surgem vozes que reclamam um regresso ao passado.


«Mas a ceifa corre lenta. Dolorosa e lenta.
E os capatazes bramam.
- Eh, gente!... Vá de animar essas mãos, que isto assim vai de enterro. Porrada pequena!...
- Eh, Ti Maria do Rosário!...
Aquela velha ficara para trás a cortar o espaço com a foice, e não via nem ouvia.
Imaginava que nunca cortara arroz em toda a sua vida com mais frenesi - nem nos seus tempos de moça.
O capataz saltou ao canteiro e sacudiu-a. Ela volveu os olhos e o Manel Boa-Fé sentiu-lhe o bafo quente da boca.
- Então, Ti Maria do Rosário?!...
-Hum?!...
- Sente-se doente?!... Vá um quartel para o barracão...
O corpo da velha sacode-se num estremecimento de pânico quando o capataz lhe fala em descansar.
Nem para ela nem para os companheiros a ceifa pode parar - a ceifa é o pão.
- Eu, homem?!...
- Pois!... Ficou-se cá atrás... Ainda consegue andar?
A velha vê os camaradas lá mais adiante, ora voltados à seara, ora voltados à resteva, naqueles movimentos que à distância parecem absurdos.
O cérebro diz-lhe que deve ir para juntos deles, e depressa, mas as pernas já não obedecem ao seu mando. O capataz segura-lhe os braços magros e tira-lhe a foice.
- Isso não, Manel!... Isso não!... - clama a Ti Maria do Rosário num desespero.
O corpo treme-lhe, os olhos gotejam. Levanta as mãos numa súplica, não percebe o que faz e depois luta com o homem, desesperada.
- Ó Manel!... A foice... dá-me a foice!...
A ceifa não pode parar - a ceifa é o pão.
Os companheiros continuam lá à frente, cada vez mais longe, a derrubar espigas e a amontoar gavelas.
- Auga!... Auga!...
De ceifeiro em ceifeiro, os três gaibéus oferecem água salobra e requentada que não mata a sede. Mas eles deixam-na escorrer pelo queixo e a água ensopa-lhes a camisa suada.
A figura da Ti Maria do Rosário, dobrada e trémula, torna-lhes mais penoso o trabalho. Cada um conhece nela o futuro que lhes baterá à porta, um dia. O futuro atabafa-lhes o peito. mais do que o ar ardente que queima os pulmões.
- Ó Manel... A foice... Dá-me a foice!...»

Alves Redol, em Gaibéus (1939), fez aquilo que está ao alcance de poucos: escreveu, nas palavras do próprio, «um romance antiassunto», um «documentário humano», sem nunca deixar de relatar a realidade, onde domina o «trabalho produtivo, a exploração descarnada do homem pelo homem, tomados os seus aspectos mais crus, na lâmina viva do dia-a-dia».
Hoje, numa época em que sistematicamente se misturam a ficção e a história criando uma névoa que torna difícil destrinçar a realidade da ficção, onde não se procura distinguir a ilusão do facto, importa não esquecer o passado, nem que seja apenas para evitar os mesmos erros no futuro.

09/04/2017

Alves Redol

Destaca-se em Portugal, frequentemente, a existência, passada e presente, de grandes autores literários. De grandes escritores. Enchemos o peito por ter, nessa área, um autor distinguido com um prémio Nobel. Muitas vezes ficamos embebecidos com ditos "escritores" de citações em redes sociais ou de livros cheios de nada. A moda, cada vez mais, dita o que lemos.
Alves Redol, fonte: Instituto Camões



... e são demasiadas as vezes que ignoramos os melhores.

«Lá que tu sejas burro, é uma coisa; que o Zé seja uma parelha de bestas é outra. Agora que vocês me obriguem a ser vosso parente, é que já não me parece certo.»
Alves Redol in "A Barca dos Sete Lemes"


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