03/05/2017

Avieiros, a vida no silêncio

Abrigo de avieiro, bateira debaixo do toldo.
«Na rota contraditória das suas águas, o Tejo foi depondo e levando, levando e repondo areias junto do valado real da Lezíria Grande. Areias e terras doutras margens por onde passa. Quando o Tejo passa, algo acontece sempre, porque um rio tem as suas glórias e os seus dramas. Como os homens. Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Mas os homens amam e apaixonam-se. Por belas coisas, às vezes; por coisas mesquinhas, outras tantas. A paixão é o tudo e o nada dos homens. Odienta ou amorosa, a paixão empolga-o, porque nem só o amor sublima o homem. Também na luta feroz ele se ultrapassa. A sobrevivência, por exemplo, é sempre uma luta feroz, mesmo em silêncio. Ou será ainda maior quando vive no silêncio.Um rio tem as suas glórias e os seus dramas, mas não se apaixona. O Tejo não pensa - age. Age ao sabor das circunstâncias. Age e constrói; age e destrói. Como o homem. Mas o homem pensa e conhece a dúvida.»

Alves Redol in "Avieiros" (1942) 

17/04/2017

Da memória

Ceifeiras na Lezíria
Da memória que se esquece ou da história que se apaga, surgem vozes que reclamam um regresso ao passado.


«Mas a ceifa corre lenta. Dolorosa e lenta.
E os capatazes bramam.
- Eh, gente!... Vá de animar essas mãos, que isto assim vai de enterro. Porrada pequena!...
- Eh, Ti Maria do Rosário!...
Aquela velha ficara para trás a cortar o espaço com a foice, e não via nem ouvia.
Imaginava que nunca cortara arroz em toda a sua vida com mais frenesi - nem nos seus tempos de moça.
O capataz saltou ao canteiro e sacudiu-a. Ela volveu os olhos e o Manel Boa-Fé sentiu-lhe o bafo quente da boca.
- Então, Ti Maria do Rosário?!...
-Hum?!...
- Sente-se doente?!... Vá um quartel para o barracão...
O corpo da velha sacode-se num estremecimento de pânico quando o capataz lhe fala em descansar.
Nem para ela nem para os companheiros a ceifa pode parar - a ceifa é o pão.
- Eu, homem?!...
- Pois!... Ficou-se cá atrás... Ainda consegue andar?
A velha vê os camaradas lá mais adiante, ora voltados à seara, ora voltados à resteva, naqueles movimentos que à distância parecem absurdos.
O cérebro diz-lhe que deve ir para juntos deles, e depressa, mas as pernas já não obedecem ao seu mando. O capataz segura-lhe os braços magros e tira-lhe a foice.
- Isso não, Manel!... Isso não!... - clama a Ti Maria do Rosário num desespero.
O corpo treme-lhe, os olhos gotejam. Levanta as mãos numa súplica, não percebe o que faz e depois luta com o homem, desesperada.
- Ó Manel!... A foice... dá-me a foice!...
A ceifa não pode parar - a ceifa é o pão.
Os companheiros continuam lá à frente, cada vez mais longe, a derrubar espigas e a amontoar gavelas.
- Auga!... Auga!...
De ceifeiro em ceifeiro, os três gaibéus oferecem água salobra e requentada que não mata a sede. Mas eles deixam-na escorrer pelo queixo e a água ensopa-lhes a camisa suada.
A figura da Ti Maria do Rosário, dobrada e trémula, torna-lhes mais penoso o trabalho. Cada um conhece nela o futuro que lhes baterá à porta, um dia. O futuro atabafa-lhes o peito. mais do que o ar ardente que queima os pulmões.
- Ó Manel... A foice... Dá-me a foice!...»

Alves Redol, em Gaibéus (1939), fez aquilo que está ao alcance de poucos: escreveu, nas palavras do próprio, «um romance antiassunto», um «documentário humano», sem nunca deixar de relatar a realidade, onde domina o «trabalho produtivo, a exploração descarnada do homem pelo homem, tomados os seus aspectos mais crus, na lâmina viva do dia-a-dia».
Hoje, numa época em que sistematicamente se misturam a ficção e a história criando uma névoa que torna difícil destrinçar a realidade da ficção, onde não se procura distinguir a ilusão do facto, importa não esquecer o passado, nem que seja apenas para evitar os mesmos erros no futuro.

09/04/2017

Alves Redol

Destaca-se em Portugal, frequentemente, a existência, passada e presente, de grandes autores literários. De grandes escritores. Enchemos o peito por ter, nessa área, um autor distinguido com um prémio Nobel. Muitas vezes ficamos embebecidos com ditos "escritores" de citações em redes sociais ou de livros cheios de nada. A moda, cada vez mais, dita o que lemos.
Alves Redol, fonte: Instituto Camões



... e são demasiadas as vezes que ignoramos os melhores.

«Lá que tu sejas burro, é uma coisa; que o Zé seja uma parelha de bestas é outra. Agora que vocês me obriguem a ser vosso parente, é que já não me parece certo.»
Alves Redol in "A Barca dos Sete Lemes"


19/03/2017

Metaskills

Livro Metaskills

«... Many of our policymakers believe if we just double down on testing standards and push harder on STEM subjects - science, technology, engeneering, mathematics - we'll revive the economy and compete better with countries that are taking our jobs. This is not a strategic direction for any developed country. The world doesn't want human robots. It wants creative people with exceptional imagination and vision - and standardized testing won't get us there.»

Marty Neumeier, in "Metaskills - five talents for the robotic age"

07/01/2017

Mário Soares 1924-2017

«- Para terminar, permita que lhe faça uma pergunta de ordem pessoal. O Dr. Mário Soares é conhecido, desde estudante, como oposicionista. Nunca ocultou as suas ideias e isso tem-lhe acarretado alguns dissabores. Antes de deportado esteve preso várias vezes. Essa experiência dolorosa não lhe trouxe ressentimento, uma certa amargura à vida? Por outras palavras: acha que valeu a pena?

- Sem sombra de dúvida! O problema, de resto, nunca se me pôs nesses termos. A minha actuação política oposicionista, que se vem exercendo há cerca de vinte e cinco anos - sempre na legalidade, embora sujeita às vicissitudes conhecidas! -  resultou de imperativos morais ou, se quiser, de consciência. Sendo psicologicamente como sou, não poderia ter agido de outra forma. As prisões e a deportação considero-as como uma espécie de acidentes de viação. Foram muito desagradáveis, claramente, mas passaram sem deixar marcas visíveis. Aliás devo dizer, em abono da verdade, que foram muito menos graves do que os que sofreram - e sofrem! - tantos outros portugueses, altos exemplos cívicos, pelo desinteresse pessoal, pelo idealismo, pelo espírito de patriótica abnegação! Quanto a ressentimento, não sinto nenhum - em relação a ninguém. Para mim, o que conta é o presente e, principalmente, o futuro. O passado só interessa como matéria de experiência humana e de reflexão. Ora, nesse aspecto, o que lhe posso dizer é que a minha vida não tem sido monótona. Não me sinto, pois, com razões especiais de queixa em relação à vida - antes pelo contrário!»

in "Escritos Políticos", 1969
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