Aquilo que deveria ser a notícia sobre um acontecimento grave tornou-se numa amostra do crescente jornalismo circense em Portugal.
Mas contrariamente à coragem demonstrada por trapezistas ou domadores de feras, à destreza e agilidade de malabaristas, ou subtiliza de encantadoras de serpentes ou contorcionistas, aquilo que a comunicação social portuguesa (ou uma boa parte dela, a mais visível, pelo menos) mostrou sobre o grave acontecimento na Ameixoeira, foi a descoordenação motora e verbal dos palhaços, o ridículo e a ignorância dos bobos e a racionalidade de um equídeo ou dum paquiderme cheio de lantejoulas.
Aquilo que simplesmente podia ter sido resumido como:
«No bairro da Ameixoeira [o onde] ocorreu uma troca de tiros [o como] entre famílias, alegadamente rivais, que obrigou à intervenção policial e da qual resultaram cinco feridos, três dos quais polícias da PSP [o quê]. As causas da ocorrência ainda estão por apurar [o porquê].»
foi transformado num triste espectáculo (televisivo) de sucessivos e contínuos "directos", cheios de contradições, num exercício de especulação, suposições e adivinhação - ora se falavam em mortos, ora se falavam em feridos, ora se falava "num casal de civis" ou se diziam "mulheres feridas". Procuraram-se entrevistas junto de moradores que, quando não respondiam "não moro cá no bairro, só vim ver o que se passava, sou do Lumiar", conseguiram testemunhos que diziam uma coisa e logo o seu contrário. Filmaram-se pessoas que pediam para não ser mostradas ou que não queriam falar - a uma dessas pessoas, às quatro perguntas feitas por uma jornalista - sim, quatro insistências! - a resposta foi sempre a mesma: "não quero dizer nada".
A acompanhar o pouco ou nada que se via nas imagens em directo, ouviam-se entusiasmados jornalistas (?!) falar em rusgas em prédios que os surpreendiam porque "os polícias tocaram às campainhas" para entrarem nos prédios à procura de pessoas - havia uma profissional que repetidamente se referia à presença duma "polícia musculada",
o que, pela insistência (e quase inexistência nas imagens) me deixou na dúvida se
haveriam agentes da UEP a rachar ou a partir cabeças ou se se tratava de
algum fetiche.
A um dos moradores que explicou que havia aberto a porta da sua casa à polícia para que estes entrassem, a preocupação da jornalista (!?) era a de saber se a porta teria sido arrombada ou a entrada forçada. Uma inglória busca por sangue, suor e lágrimas - ou qualquer discurso de ódio - que terminou com esse morador a dizer-lhe "minha senhora, não me leve a mal, eu só posso dizer-lhe o que sei. Não lhe vou dizer o que não sei, está bem?".
Mas enquanto o circo e o espectáculo do ridículo já estava armado na Ameixoeira, outra tenda circense se levantava à porta do Hospital de Santa Maria. Ali, jornalistas (!?) mostravam o seu constante desagrado por terem sido deixados do lado de fora "enquanto as famílias podiam entrar mas ficavam no relvado, inclusivamente com crianças e bebés de colo". Entanto bradavam a sua desgraça por não poderem andar a passarinhar pelo hospital dentro a filmar tudo e todos, mesmo aqueles que não quisessem ser filmados ou que nada tinham a ver com a situação, as imagens mostravam as "várias famílias" ao longe e as crianças... por vezes a correr e a brincar (como só as crianças têm a capacidade de fazer, mesmo em momentos duros e de grande tensão!).
Entrava-se em directo com introduções do género "um familiar não quis dar a cara mas disse-nos que uma das vítimas foi atingida pela polícia" mas quando a esse familiar se perguntou "como sabe que foi a polícia?" a resposta foi "disseram-me umas pessoas lá daquele bairro".
Mas se poderíamos julgar que a característica circense é exclusiva do imediatismo das televisões, repare-se na imprensa escrita.
A fome desta comunicação social portuguesa por algo catastrófico e dramático é tanta que um jornal, sobre os cinco feridos (três dos quais já tiveram alta e dois permanecem internados mas em situação estável), faz uma chamada de capa que contraria toda e qualquer regra e código jornalístico: «Mulher morta e três polícias feridos. Tiroteio na Ameixoeira fez ainda mais dois feridos graves.»
Mas poderíamos dizer que tudo isto que, em minha opinião, contribui para colocar todos no mesmo saco da incompetência - os maus e os bons jornalistas - era o resultado de se entregarem microfones e câmaras a jovens jornalistas/estagiários mal preparados e pouco familiarizados com as regras jornalísticas e o código deontológico, mas, infelizmente, neste caso viram-se novos e "velhos".
Poderíamos ainda dizer que tudo isto se havia passado naquilo a que chamam "Correio da Manhã" - pasquim e canal de tv -, mas, infelizmente, neste caso foi também na SIC/SIC Notícias, TVI/TVI24 (e em menor escala na RTP1/RTP3), e o jornal em questão é o "jornal i".
Poderíamos, por fim, dizer que tudo isto se tratou dum circo (no seu sentido mais pejorativo) mediático isolado, mas, infelizmente, está a tornar-se prática comum.
E esta é a prática "Correio da Manhã" que, parece, está a transformar-se numa escola da comunicação social em Portugal.