Tenho alguns filmes de eleição, naturalmente, mas podem contar-se pelos dedos duma mão aqueles que, para mim, são referências.
Mais do que todos aqueles aspectos que "vendem" os filmes como os efeitos especiais, o estatuto dos actores ou os realizadores, presto mais atenção à estória. Para mim, é isso que define um bom de um mau filme. Curiosamente, algumas das minhas preferências cinematográficas resultam de adaptações conseguidas de alguns livros.
E este, com o título "The Rainmaker", não fugiu à regra. Não conhecia o filme nem o livro. Não sei se a adaptação, realizada por Francis Ford Coppola, está melhor ou pior que o livro, mas fiquei muito curioso. O livro foi escrito em 1995 por John Grisham - formado em direito com bastantes livros escritos sobre Justiça, sendo que outros dos seus trabalhos também serviram de base para filmes como o "The Firm" com Tom Cruise e Gene Hackman ou "Runaway Jury" com John Cusack.
A estória poder-se-ia resumir (e quantas vezes é que já vimos isto acontecer em filmes?!) num jovem advogado que, tendo acabado de conseguir o seu diploma, abraça uma causa enfrentando grandes grupos financeiros em tribunal e no fim consegue sair vencedor ao ponto de provocar a falência da empresa condenada.
Até aqui nada de novo. Mas os contornos desta estória são verdadeiramente perturbadores.
Provavelmente para um americano a história representa apenas mais uma situação idêntica a muitas outras, mas para um português, como eu, que nasceu num país que tinha já (e ainda vai tendo) um sistema de saúde e um sistema de protecção social não pode deixar se causar estranheza e até uma certa apreensão pelos tempos e transformações que estamos a viver em Portugal e na Europa.
Esta estória conta o caso de um jovem que, depois de lhe ser diagnosticada uma leucemia, vê recusada (sete vezes) pela empresa de seguros a autorização para a realização de um transplante de medula óssea. A empresa que supostamente deveria assegurar os pagamentos de cuidados de saúde aos seus clientes, por razões burocráticas e financeiras, recusa uma intervenção cirúrgica que poderia salvar a vida a um jovem. Os pormenores de gestão desta empresa privada são expostos em tribunal onde ficam claros os interesses exclusivamente financeiros da seguradora e o arrastar das situações até que os clientes desistam (ou morram). Sempre contando que estes nunca recorram à justiça como forma de reclamar aquilo a que têm direito (porque para isso até pagaram bem).
Não deixa de ser curiosa a argumentação de defesa que o advogado da empresa faz do seu constituinte perante o júri: «pensem que uma indemnização no valor de 10 milhões de dólares fará subir os prémios dos seguros e isso pode criar condições a que o Governo possa querer tomar conta da forma como nós asseguramos os nossos cuidados de saúde» (cito de memória)... Que ultraje o Estado assegurar e cuidar da saúde dos cidadãos! Este é o pensamento liberal mais extremo e é bem real como tivemos oportunidade de ver na recente discussão sobre as alterações do actual sistema de saúde americano (bem representado neste filme/livro).
Mas, claro está, o ultraje não está no facto do Estado assegurar qualquer tipo protecção social mas sim no facto de haver quem deixe de ganhar dinheiro com isso.
Esta é apenas uma estória e por isso poderíamos considera-la como mais um livro ou filme de ficção no meio dos milhares que se escrevem ou fazem todos os anos, mas não podemos ficar indiferentes quando esta estória de ficção é escrita por alguém que conhece bem os sistemas judicial e político norte americano.
Pergunto-me, será mesmo ficção? Nos Estados Unidos não é efectivamente ficção! É assim que funciona o acesso aos cuidados médicos naquele país. Quem paga um seguro tem acesso aos serviços de saúde. Quem não tem, ou tem um seguro que não cubra todas as situações vê-lhe negado o acesso ou este passa a ser-lhe limitado.
E esta é apenas uma estória que representa milhares de outras histórias.
O que será que o futuro nos reserva?... Para onde nos levam estas novas correntes liberais europeias?...
Perguntas que só o tempo dará resposta mas a julgar pelas "nuvens" que se avistam no horizonte, é quase certo que enfrentaremos algumas tempestades.
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