Poderá dizer-se que o livro “Austeridade, Democracia e Autoritarismo” de André Freire, recentemente editado (Nova Vega Editora), é um livro que ao reunir um conjunto de artigos escritos em jornais focados em temas políticos, não surpreende, é perturbador e não sofre do efeito ‘Gato Fedorento’. Pode parecer estranha esta caracterização, mas passo já a explicar.
Começando pelo fim, poucos daqueles que possam estar a ler isto desconhecem a existência do quarteto humorístico conhecido por os ‘Gato Fedorento’. Daqueles que os conhecem, quantos conseguirão reproduzir rábulas inteiras ou apenas frases do tempo em que os seus sketches tinham por base o chamado nonsense e a piada simples onde facilmente identificavam nas personagens um amigo, um vizinho ou um familiar? Talvez muitos se lembrarão de “o papel, qual papel? o papel. qual papel? o papel.” ou de “eles falam, falam, falam e não os vejo fazer nada” ou de “psssst cala-te Zé Carlos” ou ainda de “nem um dente alho assim”.
Mas quantos se lembram das incursões humorísticas dos ‘Gato Fedorento’ pelo mundo da política, focadas em momentos e factos concretos? Certamente que poucos serão aqueles que ainda se lembram da rábula do Prof. Marcelo. E lembram-se qual o tema? Eu recordo: a IVG (Interrupção Voluntária da Gravidez). Desta avaliação empírica estou, naturalmente, a excluir aqueles que facilmente pertenceriam (ou pertencem) a um clube de fãs deste quarteto. Daqueles que têm todos os DVD’s, posters, t-shirts, pins e porta-chaves, ou ainda que fazem questão de todos os dias tomar o pequeno-almoço n’A Padaria Portuguesa.
Ou seja, facilmente se pode verificar, ou concluir, que a tentativa de fazer associar um trabalho a um momento específico e concreto tem os seus riscos, nomeadamente pela sua limitação temporal. Ou seja, em especial na política pela dinâmica que lhe conhecemos, uma observação, piada ou texto que naquele momento teve uma razão de ser e um significado lógico, assume por natureza uma vertente efémera. Recorrentemente assiste-se a isso com o humor (o exemplo que antes referi) que revisto algum tempo depois não têm o mesmo impacto ou piada – a política é uma excelente fonte para os humoristas, mas condiciona-os no tempo – ou nos ensaios ou artigos de opinião. Deste lote, excluo deliberadamente os livros ou peças jornalísticas pela razão de se tornarem, facilmente, documentos com uma forte componente histórica.
Partindo deste pressuposto, podemos então assumir que o mesmo acontece com este livro, uma vez que reúne textos escritos entre 2007 e 2013 (na verdade 2014) em que, também eles, se concentram em factos políticos identificados e limitados temporalmente. Mas essa interpretação está errada, e por isso, este livro é, no meu entender, perturbador.
Perturbador pelo simples facto de que os textos aqui reunidos se revelam de uma extrema actualidade. À parte de todo um capítulo sobre “Os portugueses, a política e a sua reforma”, com textos escritos essencialmente em 2008 e 2009 (também os há de 2011 e 2013) que mantêm uma gritante actualidade perante as constantes incursões populistas de alguma classe política quando se trata de querer cair nas boas graças dos eleitores, e de um outro dedicado à Europa onde podemos ler textos de 2008 que davam conta do caminho que então se percorria, com os resultados que hoje conhecemos, o autor, que muito respeito, e a editora perdoar-me-ão mas não consigo resistir a transcrever esta passagem:
[referindo-se ao contexto europeu] “Por cá, é isso que propõe o novel PSD (se necessário governando com o FMI): uma liberalização dos despedimentos e um recuo significativo do Estado Social. O cansaço dos eleitores com o governo pode bem propiciar uma mudança de governo já no próximo ano, não por adesão ao programa neoliberal do PSD mas para castigar o PS. Caso Cavaco seja eleito poderemos ficar sem nenhum contrapeso na Presidência capaz de sequer atenuar uma tal inflexão neoliberal.” (pág. 138)
Esta é uma parte de um texto que André Freire escreveu em Novembro de… 2010!
E o que verificámos em Junho de 2011 e constamos nos dias de hoje?
Bom, mas se é perturbador, por que razão, como se começou este texto, não surpreende? Simples: não surpreende, especialmente porque quem acompanha os trabalhos de André Freire não desconhecerá a existência de outro livro, editado em 2007 que reúne artigos seus escritos entre 2003 e 2007, “Crónicas políticas heterodoxas”(1) (da Sextante Editora) que provoca o mesmo efeito no leitor atento. Uma vez mais, porque são lidos à posteriori (quando não nos momentos em que são publicados nos jornais), acabam por ter o condão de nos confrontar com a necessidade duma mesma reflexão: mas se era assim tão evidente, o que falhou para que não tivéssemos evitado percorrer o caminho que nos trouxe até aqui?
Um tipo de reflexão que, parece, não estamos muito habituados ou preparados para a fazer.
Na verdade, e em suma, este livro de artigos ensina-nos, ou relembra-nos, o seguinte: da importância das Ciências Sociais e do respeito pela Ciência Política!
(1) Sobre o “Crónicas políticas heterodoxas”, aproveito para chamar a atenção para a parte 6 do livro (pág. 123) que começa com um texto intitulado “Partido Socialista: das primárias ao governo” de 2004. Toda uma secção (até à página 161) que merece, actualmente, uma releitura. Há sempre lições que se podem retirar.
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