29/09/2014

O Secretário-Geral e o Líder

Este foi o argumento que sustentou toda uma situação que o Partido Socialista dispensava.

Depois das eleições de 25 de Maio de 2014 para o Parlamento Europeu, onde uma parte significativa dos comentadores, jornalistas e cientistas políticos perceberam que não correram de feição para o PS, ouvimos e vimos dirigentes, neste caso António José Seguro, reclamar para si e para o PS uma "grande vitória" (que Francisco Assis disse que nunca ter sido reclamado mesmo quando escrito no site do próprio PS!?) mas na qual, afinal, o PS apenas não terá conseguido capitalizar o descontentamento das pessoas com a política, e que, mais tarde, voltaria a ser a "maior derrota desde o 25 de Abril" que o "PS infligiu à direita unida".

No meio de tantos "zigue-zagues", a direcção nacional e o próprio Secretário-Geral do PS, nessa noite e nas semanas que se seguiram, teimosamente se recusaram a reconhecer o que estava aos olhos de todos. Entraram numa espécie de estado de negação.

Mesmo depois da disponibilidade manifestada por António Costa para tentar inverter caminho que estava a ser imposto ao PS, António José Seguro continuou a insistir numa visão muito distante da realidade. Com base nesse imaginário, de que os militantes, e até mesmo os eleitores do PS não militantes, estariam ao seu lado, continuou a insistir na sua condição de líder: "Face à situação provocada na última semana dentro PS, não quero que restem dúvidas: sou o líder legítimo do PS e não me demito". E assim, numa espécie de fuga para a frente, numa tentativa de ganhar algum tempo e, talvez, tentar adormecer a rápida corrente de apoio que se gerou em torno de Costa (em poucas horas!), engendrou uma "solução" na qual ele não acredita.

Ora, o que António José Seguro talvez não tenha percebido, e esse o seu grande erro, é que a sua legitimidade não assentava no facto de ser "líder", mas sim no facto de ser "Secretário-Geral". O que António José Seguro não percebe, ou não percebeu, é a diferença entre "líder" e "Secretário-Geral".

No momento em que internamente algum militante se mostra disponível para assumir o cargo de Secretário-Geral, mesmo que o momento não se enquadre no calendário eleitoral do partido, e quando esse militante reúne um número significativo de apoios, como foi o caso de António Costa, o Secretário-Geral em funções, seja ele quem for, não deve temer a luta partidária e despoletar de imediato todos os mecanismos que estão ao seu alcance para deixar a democracia interna funcionar.  Mais do que isso, não deve permitir que quaisquer dúvidas quanto à liderança se possam aprofundar ou adensar no interior do partido.
António José Seguro, no cargo de Secretário-Geral, e o único com o poder resolver rapidamente este tipo de questões, julgou que era o líder do PS e recusou partir para eleições. Acreditou que o "povo", com excepção duma certa Lisboa, o confirmaria como o Primeiro-Ministro. Sim, como Primeiro-Ministro e não como candidato a tal, uma vez que desde a primeira hora, em 2011, e também em 2013, Seguro afirmara ter o seu destino traçado: "A minha ambição é de ser primeiro-ministro para poder servir Portugal".

Mas se o resultado destas primárias, ganhas expressivamente por António Costa (67,88% contra 31,65% de António José Seguro), mostra alguma coisa é que a sustentação da campanha de António José Seguro era a errada: ser-se Secretário-Geral do PS não significa ser líder ou ter o partido do seu lado; ser-se Secretário-Geral do PS não é ter o "direito" a disputar de eleições legislativas, mesmo sem fazer oposição, mesmo sem ideias ou um rumo; e, também, que a disponibilidade de António Costa, como foi usado recorrentemente, não abriu "uma crise no PS", mas sim, apresentou-se como uma solução à crise silenciosa que se vivia no interior do partido. Esta última evidência, desde cedo se tornou clara.

Mas há lições a retirar de todo este processo de sucessão mal conduzido pela direcção nacional do PS e, em particular, pelo seu Secretário-Geral.
Toda a campanha, longa e demasiadamente arrastada, para estas primárias ficou marcada por acusações pessoais e rasteiras, muitas vezes comprovadamente assente em mentiras (!), ou mesmo assente na demagogia e no populismo. Uma situação que serviu para criar divisões e roturas no interior do partido. Entre militantes de base, que muitas vezes encararam esta campanha com a emoção com que muitas vezes se acompanham os clubes desportivos, e até mesmo entre dirigentes - atente-se aos discursos dos dois candidatos, tanto o do perdedor como o do vencedor. Custa a acreditar que tamanha cisão tenda a desaparecer num curto ou médio espaço de tempo. Isto, se a hipocrisia não galgar terreno entre os militantes.

No entanto, as "primárias", abertas a não militantes, sem discutir nesta fase se acrescentaram mérito ou demérito à política, especialmente tratando-se de eleições primárias para um cargo que não existe eleitoralmente, abre espaço a perguntas para as quais não é fácil encontrar resposta.
Amanhã, imaginando que António Costa assume o cargo de Primeiro-Ministro, se por alguma razão se vê obrigado a pedir a demissão, estará o PS legitimado para apresentar um outro nome ao Presidente da República para esse cargo para formar governo, ou terá que forçosamente ir a eleições, mesmo dispondo de um excelente grupo parlamentar eleito (os únicos de facto eleitos em legislativas)?

Não obstante uma das candidaturas envolvidas nesta eleição ter tentado diferenciar os temas e os lugares próprios em cada momento para os discutir, estas eleições primárias colocam ainda mais dúvidas ao nível partidário.
Não conduzirão este tipo de eleições ao esvaziamento dos partidos, isto é, neste caso, onde o Secretário-Geral, que era também um candidato, se demitiu obrigado a uma eleição interna para esse lugar, qual será o peso da opinião ou da discussão entre os militantes? Não será a próxima eleição do Secretário-Geral apenas uma ratificação, que não pode levar em consideração a discussão entre militantes? Não é esta a abertura de um caminho para o profissionalismo da política onde os partidos só precisarão de meios (humanos) para desenvolver acções de marketing político e para a organização de actos electivos? Estarão, porventura, os militantes legitimados para contrariar uma eleição primária para candidato a Primeiro-Ministro, na eventualidade de outro candidato se apresentar à eleição do Secretário-Geral?

Apesar de muitos defenderem esta iniciativa como positiva para a democracia, não estou tão certo de que tal assim seja. Não porque tenha alguma evidência imediata do prejuízo introduzido por esta iniciativa de personificação na política, nomeadamente no cargo de Primeiro-Ministro, mas sim pelas incertezas que ela levanta para o futuro.
Mas estou certo que os muitos estudos e trabalhos académicos que surgirão no campo das Ciências Sociais, a partir desta oportunidade que se abriu, poderão dar respostas a algumas das muitas perguntas que agora se levantam.



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