Ceifeiras na Lezíria |
Da memória que se esquece ou da história que se apaga, surgem vozes que reclamam um regresso ao passado.
«Mas a ceifa corre lenta. Dolorosa e lenta.E os capatazes bramam.- Eh, gente!... Vá de animar essas mãos, que isto assim vai de enterro. Porrada pequena!...- Eh, Ti Maria do Rosário!...Aquela velha ficara para trás a cortar o espaço com a foice, e não via nem ouvia.Imaginava que nunca cortara arroz em toda a sua vida com mais frenesi - nem nos seus tempos de moça.O capataz saltou ao canteiro e sacudiu-a. Ela volveu os olhos e o Manel Boa-Fé sentiu-lhe o bafo quente da boca.- Então, Ti Maria do Rosário?!...-Hum?!...- Sente-se doente?!... Vá um quartel para o barracão...O corpo da velha sacode-se num estremecimento de pânico quando o capataz lhe fala em descansar.Nem para ela nem para os companheiros a ceifa pode parar - a ceifa é o pão.- Eu, homem?!...- Pois!... Ficou-se cá atrás... Ainda consegue andar?A velha vê os camaradas lá mais adiante, ora voltados à seara, ora voltados à resteva, naqueles movimentos que à distância parecem absurdos.O cérebro diz-lhe que deve ir para juntos deles, e depressa, mas as pernas já não obedecem ao seu mando. O capataz segura-lhe os braços magros e tira-lhe a foice.- Isso não, Manel!... Isso não!... - clama a Ti Maria do Rosário num desespero.O corpo treme-lhe, os olhos gotejam. Levanta as mãos numa súplica, não percebe o que faz e depois luta com o homem, desesperada.- Ó Manel!... A foice... dá-me a foice!...A ceifa não pode parar - a ceifa é o pão.Os companheiros continuam lá à frente, cada vez mais longe, a derrubar espigas e a amontoar gavelas.- Auga!... Auga!...De ceifeiro em ceifeiro, os três gaibéus oferecem água salobra e requentada que não mata a sede. Mas eles deixam-na escorrer pelo queixo e a água ensopa-lhes a camisa suada.A figura da Ti Maria do Rosário, dobrada e trémula, torna-lhes mais penoso o trabalho. Cada um conhece nela o futuro que lhes baterá à porta, um dia. O futuro atabafa-lhes o peito. mais do que o ar ardente que queima os pulmões.- Ó Manel... A foice... Dá-me a foice!...»
Alves Redol, em Gaibéus (1939), fez aquilo que está ao alcance de poucos: escreveu, nas palavras do próprio, «um romance antiassunto», um «documentário humano», sem nunca deixar de relatar a realidade, onde domina o «trabalho produtivo, a exploração descarnada do homem pelo homem, tomados os seus aspectos mais crus, na lâmina viva do dia-a-dia».
Hoje, numa época em que sistematicamente se misturam a ficção e a história criando uma névoa que torna difícil destrinçar a realidade da ficção, onde não se procura distinguir a ilusão do facto, importa não esquecer o passado, nem que seja apenas para evitar os mesmos erros no futuro.
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