03/06/2016

Livro: A falácia do empreendedorismo

Apesar de Adriano Campos e José Soeiro, os autores deste livro, se apresentarem como sociólogos, e académicos (o primeiro doutorando e o segundo doutorado), a julgar pelo título poderíamos entender, como leitores, que este livro se trata de um trabalho de economia dada a assumpção desta disciplina (1) com a palavra da moda: "empreendedorismo". Na verdade, entendo, trata-se de um escrito político e marcadamente ideológico (neste caso à esquerda). E pode assumir-se essa marca ideológica porque o "empreendedorismo" é também ele um movimento (expressão minha) ideológico (neste caso, visto como um movimento liberal, à direita). Ele tem impacto social tremendo, seja ao nível da inclusão, da educação, das relações laborais e financeiras.

Mas independentemente da carga ideológica que este trabalho possa acarretar para quem o lê (mais ou menos acentuada, dependendo da posição em que o leitor se situe no espectro político), ele cumpre o seu objectivo primário: expor alguns dos mitos ligados ao empreendedorismo e expor alguns dos seus efeitos nefastos.

N'«A falácia do empreendedorismo» é possível encontrar uma clara relação desta visão liberal, assumindo o risco da expressão, e da sua evangelização como solução para muitos dos problemas sociais, como o desemprego, ou como veículo para alcançar níveis de bem ou estatuto social superiores, com:

  • a perda das relações laborais e deterioração das condições de trabalho (precariedade);
  • a evolução (aumento) do desemprego, a perca de direitos e protecção social, e avesso à protecção laboral;
  • a discriminação no acesso a incentivos e apoios ao "empreendedorismo" - nomeadamente o caso português onde esta discriminação é feita ao nível académico e etário;
  • a diferenciação (pela negativa) e discriminação na capacidade de acesso a fontes de financiamento para ideias inovadoras;
  • a durabilidade dos projectos resultantes destas ideias (quando financiadas);
  • a visão individualista e egocêntrica implícita ao movimento "empreendedor";
... entre outras.


Mas para além destas relações que o livro tenta evidenciar, e que ao leitor mais atento possa parecer como uma inversão de toda uma lógica evolutiva e construída durante séculos (e vejam-se, por exemplo, os paralelismos que se podem, eventualmente, estabelecer entre o tão aclamado "empreendedorismo" do século XXI e aquele que foi considerado o "empreendedorismo" proporcionado pela Revolução Industrial com início no século XVIII), podem ainda encontrar-se alguns paradoxos entre a realidade e a ilusão do "empreendedorismo".

No momento em que começam a surgir vozes que defendem que não são os melhores alunos que têm as ideias mais inovadoras e passíveis de maior sucesso, estabelecem-se critérios de acesso a apoios e incentivos que passam pelos níveis académicos dos putativos "empreendedores"?

Como encarar a visão do movimento "empreendedor" como a solução para as crises (financeiras e sociais, maioritariamente provocadas pela liberalização e desregulação dos mercados e das relações) em que mergulharam (e por lá permanecem mergulhados) os países e sociedades consideradas mais desenvolvidas quando é nos países ou sociedade menos desenvolvidas que encontramos a proliferação de "empreendedores" e trabalhadores por conta própria e nas quais não se perspectiva, com isso, um fortalecimento das relações e protecção laboral ou social, nem sequer um aumento do bem-estar e desenvolvimento (diferente de "crescimento") económico? (2)

E estas são só algumas das perguntas que, ao ler este livro, um leitor mais crítico poderá colocar.
Definitivamente, e uma vez mais, independentemente da visão e percepção ideológica de cada um sobre o tema, este é um trabalho que merece ser lido. 


(1) Prefiro o uso de "disciplina" quando me refiro a Economia em vez de "ciência". Esta preferência acompanha a ideia expressa, e muito bem explicada, por Ha-Joon Chang em «Economics: The User's Guide»: "Economics is a political argument. It is not - and can never be - a science."

(2) Ver «Economics: The User's Guide» ou «23 Things They Don't Tell You About Capitalism» de Ha-Joon Chang (http://hajoonchang.net/). Ver ainda «The Determinants of Entrepreneurship at the Country Level: A Panel Data Approach» de Gonçalo Brás e Elias Soukiazis (disponível em http://www.uc.pt/feuc/gemf/working_papers/pdf/2015/gemf_2015-14)



Sinopse:

Empreendedorismo. Saída para a crise de emprego? Nos últimos anos, o empreendedorismo tem-se apresentado como a saída para a crise do emprego. Multiplicaram-se programas públicos de apoio e promoção do empreendedorismo. O tema entrou nos currículos de todos os níveis de ensino, havendo até workshops de «empreendedorismo para bebés». O «espírito do empreendedorismo» foi acolhido nas políticas sociais e desenvolveu-se uma rede de instituições, plataformas e encontros destinados a disseminá-lo. Neste livro, dá-se conta deste processo, dos mitos que lhe estão associados e dos resultados concretos alcançados. Sabia que a totalidade das medidas de apoio ao empreendedorismo, nas quais foram investidas centenas de milhões de euros, chegaram apenas a 1% dos desempregados oficialmente inscritos? Sabia que os países onde há taxas mais elevadas de autoemprego não são os países com economias mais inovadoras, mas sim onde há mais pobreza, como o Vietname ou o Bangladesh? Sabia que a herança, e não o mérito e o esforço individual, tem um peso cada vez maior na acumulação de riqueza na nossa sociedade, ao contrário do que sugere o discurso do empreendedorismo? De Steve Jobs a Oprah Winfrey, de Miguel Gonçalves ao Shark Tank, aqui encontrará as histórias de encantar do empreendedorismo. Mas também o outro lado desta narrativa. Não estarão a vender-nos uma falácia?

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